Entre 1993 e 2003 trabalhei nas proximidades da Praça de Espanha. É um local que conheço bem da cidade de Lisboa, sendo que uma das poucas coisas que mudou para aqueles lados foi a retirada dos comerciantes que já tinham sido corridos do Martim Moniz, para dar lugar à especulação imobiliária.
Foi por isso que vi com surpresa a notícia de ontem do Público, sobre que a Praça de Espanha vai meter muita água? Pela notícia percebe-se que a Câmara quer ouvir os cidadãos, mas depois da experiência horrível da Segunda Circular (que abordamos em múltiplos posts), pensei seriamente nem sequer continuar a ler. Mas, prontos, lá pensei: ainda talvez possa dar mais um contributozinho, para que estes políticos não dêem cabo definitivamente desta cidade… A que se somou o recente artigo que elaborei sobre as soluções loucas da Câmara de Lisboa para as cheias na cidade. Confesso que não fosse o título do Público, não teria continuado a ler o artigo…
A quase unanimidade das propostas insiste na importância da Praça de Espanha como reguladora do ciclo da água, e nomeadamente das cheias repentinas, que ocasionalmente afectam a cidade. É uma bofetada de luva branca de quase todos os proponentes no Plano Geral de Drenagem de Lisboa, que era de leitura obrigatória para este concurso.
Se essa obrigatoriedade fosse levada a sério, oito das nove propostas apresentadas neste concurso, deveriam ser chumbadas! E porquê? Porque no Plano Geral de Drenagem de Lisboa, as soluções preconizadas por 8 das nove propostas não são consideradas. Lendo esse Plano em detalhe, vemos que as referências a bacias de retenção, ou soluções semelhantes, aparecem associadas apenas à solução B, visível no ponto 9.1.3, página 163 do PDF, e seguintes.
Acontece que no capítulo 10 do PDF, mais concretamente na página 200 do PDF, se diz claramente o que está a ser implementado: “recomenda-se que se implemente a solução C”. E nessa solução C, e em particular analisando o “Quadro 10.1-Estimativa de custos de investimento para as soluções propostas” da página 196 do PDF pode-se observar que para a solução C (a proposta aprovada) se destinam apenas 494 000€ para as Bacias de Amortecimento, por elas terem sido abandonadas! Tal está também claro no Programa Preliminar, onde não há nenhuma referência a bacias de retenção, excepto na já existente na área da Rua Eduardo Malta.
Neste aspecto associado à gestão de precipitação repentina, os pontos seguintes resumem as notas que observei das propostas (tentem encontrar a partir deste link, consegui na sexta, mas não no fim de semana; todavia os links parecem manter-se):
- Proposta 1, apresenta bacia de retenção, no centro da Praça, mas de resto é muito fraquinho.
- Proposta 2, os “skateparks” funcionam igualmente como elementos de recolha de águas pluviais.
- Proposta 3, criação de uma infraestrutura biológica de bacias de retenção à superfície e, uma infraestrutura subterrânea capaz de absorver a acumlução de água da chuva em períodos de precipitação repentina. Acresce uma “cobertura de um reservatório de escoamento com uma capacidade de aprox. 17.500 m3, que corresponde à área inundável na confluência das avenidas próximas.
- Proposta 4, um parque “inacabado”, mas com bacia de retenção.
- Proposta 5, uma sequência de “taças” modeladas no terreno, com cotas de fundo distintas entre si, permitirá atenuar o escoamento da água das chuvas, reduzindo a velocidade e tempo de escoamento, ao mesmo tempo que as superfícies planas criadas por estas taças organizam espaços diversificados, com possibilidade de usos distintos.
- Proposta 6, inclui “Bacia seca de retenção para infiltração e laminagem de cheias”
- Proposta 7, inclui Bacias de recolha e Bacias de retenção
- Proposta 8, refere que “Estas bolsas são simultaneamente zonas permeáveis e de atividades programáticas e funcionam como áreas de contenção, armazenamento e retenção das águas pluviais. Propõe-se um sistema que – através da reutilização e otimização das condutas do subsolo – restabeleça a função drenante da Praça de Espanha e a conecte com os aquíferos existentes.”
- Proposta 10, refere que “Devido a estas circunstâncias, propõe-se que a modelação do terreno recupere e potencie a linha de talvegue promovendo-se a drenagem superficial e sub-superficial com a construção de um poço drenante a montante, no alargamento junto do Arco de São Bento e que ligará ao “caneiro de Alcântara” a jusante da área de intervenção.”
Do resto das propostas, verifica-se que muito parece já decidido, apesar das muitas cambalhotas do passado recente, como está registado neste fórum. Foi uma corrida a quem punha mais árvores no projecto… Infelizmente, é o trânsito que vai sofrer, numa zona da cidade onde os problemas são crónicos. Por isso, duas soluções simples minimizariam certamente este problema. Envolvem os dois cruzamentos que são criados, bem como a retirada do estacionamento existente, como podem ver na imagem abaixo.
Quanto aos cruzamentos, é garantido que o afunilamento do trânsito se irá agravar, sobretudo no sentido da saída da cidade. No sentido da entrada de tráfego na cidade, a Avenida dos Combatentes continuará a funcionar como “buffer”, mas dada a sua dimensão, será suficiente para acumular condutores furiosos durante a manhã. O problema é na saída da cidade…
O cruzamento junto à Gulbenkian será um verdadeiro pesadelo. Conjugar as várias possibilidades de fluxo de tráfego obrigará a uma gestão praticamente impossível dos semáforos. Dada a importância dada à circulação pedonal, essa gestão deverá demonstrar-se impossível, e será garantida a confusão, e não só em horas de ponta. A solução poderia passar por um túnel no sentido de saída da cidade, na direcção da Avenida António Augusto de Aguiar para a Avenida dos Combatentes. O traçado do Metro dificulta a implementação, mas não o impossibilita.
No cruzamento seguinta na direção de saída, na confluência da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro e Avenida Santos Dumont, a situação deverá ser ainda mais complicada. Por um lado, o “buffer” existente entre o cruzamento anterior e este é demasiado curto. A necessidade de acomodar os vários fluxos, alguns dos quais absolutamente residuais (eg. quem vem de norte na Avenida dos Combatentes e que se dirige para a Avenida Santos Dumont), traduzir-se-á em tempos de espera no semáforo muito prolongados.
A solução neste cruzamento é todavia muito simples. Dada a maior elevação da Avenida Santos Dumont e a parte norte da Avenida dos Combatentes, o cruzamento pode ser alteado, permitindo a criação simples de um túnel na direcção de saída da Avenida dos Combatentes, o fluxo primordial na zona. Tal favorece a implementação do túnel, que pode começar à cota inicial do cruzamento da Gulbenkian, passando por baixo deste cruzamento, e subindo depois para vencer o desnível necessário até à zona da linha de comboio. A subida da cota deste cruzamento poderá permitir acomodar parte das terras a escavar, para criar as bacias de retenção na Praça de Espanha. Permite igualmente criar um desnível mais gradual no início da Avenida Santos Dumont, favorecendo também aí o acesso, na vizinhança de duas enormes edificações que nascerão no local.
Este túnel poderia ser bidireccional, mas no meu entender, faz mais sentido primeiro que seja no sentido da saída. A utilização de sentidos reversíveis no túnel, em cada uma das horas de ponta poderia ser uma solução, embora não seja uma tradição, infelizmente, em Portugal. A conjugação dos dois túneis a uma maior profundidade permitiria também a sua utilização como reservatório temporário, à semelhança do túnel SMART, que mencionamos neste artigo.
Relativamente ao estacionamento, todos os lugares de estacionamento à superfície parecem desaparecer, ou pelo menos não são considerados. Numa zona da cidade pensada para escritórios, esta é uma decisão absurda. São feitas algumas referência ao estacionamento obrigatório nos novos edifícios, mas mais nada. Quando se vai mexer desta forma na infraestrutura, seria quase obrigatório considerar um parque de estacionamento de algum significado, que poderia mesmo alimentar a rede de transportes públicos, nomeadamente o metro. Esse parque de estacionamento poderia servir também como equipamento de retenção temporário de águas pluviais, à semelhança de exemplos que começam a aparacer no estrangeiro.
Novo Plano para a Praça de Espanha